[Exclusivo]

Benoît Peeters fala sobre sua carreira, “As Cidades Obscuras” e traça panorama do cenário de quadrinhos

24 agosto 2025
Por Fora do Plástico


Em sua passagem pelo Brasil, para participar das Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da USP, Benoît Peeters passou alguns dias no interior de Minas Gerais. Sua visita à cidade histórica de Ouro Preto, no sábado (16), proporcionou uma entrevista ao Fora do Plástico, que também pode ser assistida no YouTube.

Coautor da celebrada série “As Cidades Obscuras”, Peeters é também um dos grandes pesquisadores de quadrinhos da atualidade. Entre seus objetos de pesquisa está a criação de Hergé, Tintim, no qual se tornou uma referência. O pesquisador escreveu os livros “Le monde d’Hergé”, uma biografia do quadrinista belga, e “Hergé, Fils de Tintin”.

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Outro tema de interesse do autor é a história dos quadrinhos e seu futuro. O tema é abordado no livro “Histórias em Quadrinhos: A Nova Arte”, publicado no Brasil pela  editora QS Comics e o Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicação da USP, com distribuição gratuita também em ebook.

Nesta entrevista, Peeters fala sobre sua carreira, a parceria com François Schuiten iniciada na infância, a origem de “As Cidades Obscuras — ainda inédita no Brasil —, além de comentar sua trajetória acadêmica e oferecer um panorama do mercado de quadrinhos, seus criadores e a situação econômica do setor.


Fora do Plástico: Esta não é a sua primeira vez aqui no Brasil. Há alguma boa lembrança que você teve aqui, alguma lembrança especial que possa compartilhar com a gente?
Sim, estive em 1997 com meu amigo François Schuiten. Ele é meu amigo desde a infância e visitamos o festival de Belo Horizonte, com uma bela exposição. Acho que o nome era “Dos Quadrinhos à Multimídia”.

François Schuiten e Benoît Peeters na 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos, em 1997 | Foto: Alta Plana.

Em 1997 era um pouco diferente, mas já tínhamos um site, um site criativo. Até ganhamos um prêmio por isso, porque era algo bem inovador. É claro que agora parece antiquado, à moda antiga. A tecnologia mudou muito. Mas ainda estamos muito presentes na internet com um site chamado altaplana.be. Um amigo holandês gerencia tudo, com contribuições do mundo inteiro. É incrível: damos algum material, mas muito vem de leitores, de vários países, em diferentes línguas.

Fora do Plástico: E em comparação com quando você veio pela primeira vez em 1997, em Belo Horizonte, nosso mercado de quadrinhos no Brasil ainda cresceria muito. Em volume, claro, mas também em diversidade. Você acredita que esse crescimento dos quadrinhos ao redor do mundo desde os anos 90 pode ser chamado de uma espécie de fenômeno?

Sim. Em muitos países houve uma evolução enorme. Talvez pela ideia de graphic novel. Podemos criticar o termo, mas ele ajudou muito: ajudou a estar em livrarias, bibliotecas, jornais sérios, às vezes até na televisão. Os festivais internacionais também cresceram, e houve muito intercâmbio entre países. Por muito tempo, cada país importante tinha sua própria tradição e conhecia pouco das outras. Agora está mais interligado, e isso é muito positivo.

Não sei exatamente como funciona o mercado e a criatividade no Brasil, mas espero descobrir nos próximos dias, especialmente nas Jornadas de São Paulo, onde vou conhecer outras pessoas.

Fora do Plástico: Você disse que você e François Schuiten eram amigos de infância. Vocês eram colegas de classe, certo?
Sim, nos conhecemos quando tínhamos 12 anos. Estudamos juntos dos 12 aos 14 e criamos um jornalzinho na escola. Também praticávamos pintura sob a orientação do pai dele, que era arquiteto, mas também pintor.

Íamos só nós dois ao estúdio no domingo de manhã e, às vezes, visitávamos exposições no sábado à tarde. Mas devo dizer: ele era melhor do que eu no desenho e na pintura. Eu sempre gostei muito de imagens, essa experiência curta foi importante para mim, mas acabei me descobrindo melhor como escritor.

Benoît Peeters e François Schuiten em 1983 | Foto: Arquivo pessoal de Benoît Peeters.

E essa amizade se transformou em uma parceria duradoura nos quadrinhos, certo? Como isso aconteceu?

Éramos muito próximos e tínhamos os mesmos gostos quando crianças. Mas na adolescência fui para Paris estudar literatura e filosofia, enquanto François ficou em Bruxelas, estudando quadrinhos em uma escola especializada. Perdemos contato por um tempo.

Voltei para Bruxelas com 21 ou 22 anos, por razões sentimentais. Quando nos reencontramos, a cumplicidade estava lá imediatamente. François tinha publicado algumas histórias na Métal Hurlant, que eu adorei. Eu, por minha vez, tinha escrito dois contos curtos (o segundo se passava em uma cidade imaginária), e ele leu.

Podemos dizer que houve uma mistura: as primeiras histórias dele na Métal Hurlant, feitas com o irmão e um amigo, e a atmosfera do meu romance, uma ficção labiríntica entre Borges e Agatha Christie. Então tentamos criar um livro juntos para a revista À Suivre (“A Seguir”), que era muito importante e publicava nomes como Hugo Pratt e Jacques Tardi. Nós éramos os estreantes, os jovens. Mas nosso trabalho foi bem recebido desde o primeiro volume: Les murailles de Samaris (“As Muralhas de Samaris”), sobre duas cidades imaginárias.

Imagem de “Les murailles de Samaris”, primeiro livro de “As Cidades Obscuras”.

Não planejávamos uma série, mas o livro foi bem-sucedido e gostamos da parceria. Fizemos outro — o primeiro em cores, o segundo em preto e branco — e percebemos que ambos pertenciam ao mesmo universo, que batizamos de Les Cités Obscures (As Cidades Obscuras).

“Obscuro” em francês tem vários significados: mistério, segredos, algo diferente do nosso mundo. Cada livro é independente, mas ao ler alguns em qualquer ordem, o leitor percebe conexões.

A ambientação é essencial: arquitetura e urbanismo são muito importantes. O pai de François era, como eu disse, um arquiteto renomado, e nós dois éramos filhos de grandes cidades. Eu conhecia Paris, ele conhecia Bruxelas e algumas cidades italianas. Nos primeiros livros, esse tema foi central. Depois, os personagens ganharam destaque — por exemplo em L’Enfant penchée ou L’Ombre d’un homme. Basta ver os títulos: os primeiros são conectados aos lugares (La Tour), os seguintes aos personagens.

Coleção integral de “As Cidades Obscuras”, publicada pela Casterman no mercado franco-belga.

Mesmo assim, a arquitetura segue essencial. François não gosta de desenhar o mundo real — carros, computadores, smartphones — mas prefere inventar objetos específicos. Criamos arquiteturas, figurinos, cortes de cabelo… mundos que não são exatamente futuristas, nem do passado… Mas como poderiam ter sido o mundo se, na época de Júlio Verne, tecnologia e ideologia tivessem seguido outro rumo.

Júlio Verne é muito presente nesses mundos, especialmente em Le Retour du Capitaine Nemo (“O Retorno do Capitão Nemo”). O Capitão Nemo, claro, deveria estar morto, mas demos a ele uma terceira vida, uma nova existência.

E por falar nisso, é uma pena que ainda não tenha sido publicado aqui no Brasil. Les Cités Obscures não saiu por aqui, mas você vai estrear com Revoir Paris, pela QS Comics. O que espera da recepção dos leitores brasileiros?

Primeiro, devo dizer que muitos dos nossos livros foram publicados em Portugal durante vários anos. Infelizmente, a editora acabou desaparecendo. Autografei algumas dessas edições antigas no Rio de Janeiro,  publicadas da Edições 70 e da Meribérica.

Lembro também, até contei até para minha companheira Valérie, que houve um congresso imaginário em Coimbra sobre “As Cidades Obscuras”. Chamava-se “As Cidades Visíveis”. Foi muito engraçado porque dois fãs inventaram todo o congresso: escreveram apresentações filosóficas, políticas, psicanalíticas, sobre a questão das mulheres, diferenças… e descreveram tudo como se tivesse realmente acontecido.

Isso é pra dizer que, se não somos muito conhecidos no Brasil, em certo momento fomos bem conhecidos em Portugal. Mas havia uma dificuldade: muitos fãs compravam a edição francesa, que saía antes, e preferiam o original. Como o mercado português era pequeno, a editora teve problemas.

Agora teremos um livro no Brasil em algumas semanas ou meses, e estamos muito felizes com isso. Mas não é um volume de “As Cidades Obscuras”, e sim uma história independente: “Revoir Paris” (“Rever Paris”). A trama acontece no nosso mundo, mas em 2156 — dois séculos após o nosso nascimento (François e eu nascemos em 1956). Talvez eu não devesse contar isso… (risos)

Imaginamos Paris em uma situação muito específica. É uma história de ficção científica, diferente de “As Cidades Obscuras”, que são mais fantásticas. Talvez a editora tenha gostado justamente da ideia de publicar algo independente, sem ligação com outros livros. É claro que esperamos que alguns leitores queiram descobrir nossas demais obras, mas entendemos a escolha.

Temos sorte no mercado francês, com um público grande. Nossos livros têm de 100 a 130 páginas; vários são em cores, o que encarece a produção, mas queremos objetos bonitos. Muito obrigado ao Telmo Diniz por correr o risco de publicar este primeiro livro aqui. Esperamos que seja um sucesso. Teria sido ótimo estar aqui já com o lançamento, mas digamos que estou preparando o terreno.

Há também uma pequena publicação gratuita que vocês destacaram no site. É um livro sobre quadrinhos, preparado para conferências, com muitas ilustrações. Foi impresso, mas também está disponível online. Assim, as pessoas podem descobrir não apenas a ficção que escrevi, mas também minhas reflexões sobre a história e o futuro dos quadrinhos, e sobre a especificidade dessa linguagem — que é muito importante para mim.

As pessoas às vezes pensam que os quadrinhos são apenas um gênero menor. Não é considerado tão sério quanto a pintura, ou como romances, ou mesmo como o cinema. Mas você tem muita liberdade com os quadrinhos, e pode criar algumas coisas incríveis sozinho ou com duas ou três pessoas. E assim temos uma liberdade real, porque não precisamos ter um mercado de massa. Nós só precisamos de alguns leitores… E você também pode encontrar os livros nas bibliotecas.

Livraria Outras Palavras, em Ouro Preto, onde a entrevista foi gravada | Foto: Divulgação

Então, acho que há muito futuro nos quadrinhos e para os jovens autores, com temas políticos, autobiográficos, investigativos, jornalísticos ou totalmente ficcionais. Existem tantas possibilidades.

Vamos lembrar “Maus”, de Art Spiegelman, “Persépolis”, de Marjane Satrapi, ou de um de seus autores, Marcello Quintanilha, que foi premiado em Angoulême com seu livro maravilhoso “Escuta, Formosa Márcia”, você sabe o título. Ele foi publicado em muitos países, foi um sucesso enorme.

E claro, Ricardo Leite, com o seu belo livro sobre Tintim, a busca de Tintim e a paixão pelos quadrinhos. Mas tenho certeza de que há muitos outros. Conheci no Rio uma jovem muito criativa, Luma Rodrigues, e torço para que ela desenvolva seu trabalho. Tenho certeza de que há muito futuro artístico.

Economicamente, não posso dizer se os quadrinhos podem se desenvolver como um mercado completo, mas aqui estamos nós em uma bela livraria. Então, vamos torcer para que os quadrinhos encontrem muitos lugares para serem vistos.

Aqui no Brasil, os quadrinhos ainda são muito associados à infância, às crianças. Há quase uma ideia de que, quando as pessoas crescem, na vida adulta, os quadrinhos não fazem mais parte de suas vidas. Mas para nós parece que, para os franceses e os belgas, isso é diferente, os quadrinhos são mais parte da vida adulta. Você acredita que há algo que explique isso? Os quadrinhos são mais parte da cultura francesa e belga do que da nossa aqui no Brasil?

Quando eu era criança, em Bruxelas, os quadrinhos eram principalmente para crianças, mas eram muito presentes. Desde o início dos anos 30 havia “Tintim”, de Hergé, e seu sucesso atraiu muitos autores nos anos 40, 50, 60. Portanto, os quadrinhos eram muito presentes.

Na França, com “Asterix”, de Uderzo e Goscinny, os quadrinhos foram incrivelmente bem-sucedidos, e crianças e adolescentes liam com prazer. Não tínhamos tanto a tradição dos super-heróis. Tínhamos nossa própria produção, com revistas como Spirou, Tintin e Pilote.

Quando esses leitores se tornavam jovens adultos, começaram a querer novos temas ou novos estilos. E foi justamente nesse período que começamos a trabalhar, junto com autores como Tardi, Moebius, Druillet, Gotlib e Claire Bretécher — uma das primeiras mulheres no mundo dos quadrinhos.Havia, portanto, um interesse adulto pelos quadrinhos, e isso ajudou a criar uma nova realidade, com tantos grandes talentos em estilos diferentes. Até pessoas “sérias” começaram a perceber que os quadrinhos não eram apenas para crianças. Foi nesse contexto que obras como “As Cidades Obscuras” puderam encontrar um público.

Muitos dos nossos leitores tinham lido Hergé, “Asterix”, “Blake & Mortimer”, “Spirou”, “Smurfs” quando eram crianças. Mas, ao crescer, queriam algo diferente, e gostaram da linguagem. Em alguns países, como Estados Unidos, Japão ou talvez Argentina, há uma grande tradição de quadrinhos. Em outros, como a Alemanha, foi muito diferente: as HQs adultas tiveram dificuldade em encontrar espaço, por causa de certo preconceito.

Lembro de quando criei uma série de documentários para o canal franco-alemão ARTE. Na França, foi bem recebido, mas o diretor da ARTE na Alemanha me disse: “Oh, você parece uma pessoa inteligente. Não sei por que está perdendo seu tempo com quadrinhos. Cultura é música e filosofia.” O único livro que ele gostou foi “Maus”, de Art Spiegelman, porque era um assunto muito sério para os alemães. Aceitei, mas respondi: “Você deveria ler ‘Persépolis.’” Esse estava “ok” porque falava da condição das mulheres, do exílio, do Irã. Mas, para todos os outros tipos de quadrinhos, ele achava que era perda de tempo.

Ele era um homem mais velho. Tenho certeza de que muitos jovens jornalistas na Alemanha agora gostam de quadrinhos, mas o país nunca teve a mesma tradição que a França, a Bélgica ou o Japão. No Japão, todo mundo lê mangá — e há tanta variedade que existe mangá para todos os públicos, não só para crianças.

Fora do Plástico: Na verdade, em todo o mundo as pessoas estão lendo mangá: na França, aqui no Brasil… É um mercado em crescimento.

Sim, sim. mesmo que o Japão enfrente algumas dificuldades agora. Ainda assim, é algo muito importante. O mangá foi um fenômeno editorial, com muitas revistas baratas, acessíveis a todos. Agora a evolução é mais para o formato de livro, o que muda: você precisa escolher um autor, uma obra, e fica mais caro, mais artístico, digamos.

Antes, muitos quadrinhos eram veiculados na imprensa, diariamente, por gerações, como Mafalda ou Peanuts. Estavam presentes no dia a dia: você lia o jornal, encontrava suas tiras favoritas, reencontrava os personagens. Quando se passa para o formato de livro, já não é para todos. É uma escolha diferente.

Fora do Plástico: Gostaria de saber como começou seu interesse em pesquisa acadêmica sobre quadrinhos.

Quando era estudante, fiz filosofia, mas, como já disse, estava escrevendo dois romances curtos. Não era um aluno muito dedicado e não queria fazer uma tese clássica em filosofia.Tive, porém, um ótimo professor: Roland Barthes, um escritor importante. Eu disse a ele: “Gostaria de fazer minha tese sobre Tintim. Sobre um livro específico: Les Bijoux de la Castafiore (“As Joias da Castafiore”), que é um dos últimos álbuns, muito particular, quase uma paródia interna de Tintim.”

Roland Barthes havia estudado minuciosamente, linha por linha, um conto de Balzac. Usei isso como modelo e tentei a mesma abordagem. É claro que o objeto era totalmente diferente. Analisei o álbum do primeiro quadro da primeira página até o último quadro da última página, mas também fiz outras análises sobre outros álbuns de Tintim ou obras relacionadas. Esse foi, digamos, meu primeiro trabalho acadêmico sobre quadrinhos.

Naquela época, havia apenas algumas publicações sobre quadrinhos, e especificamente sobre Tintim. Hoje temos centenas de livros, mas era realmente o começo. Tive a sorte de conhecer Hergé e fazer algumas entrevistas com ele.

Capa da edição brasileira de “As Jóias da Castafiore”, publicada pela Cia. das Letras

Depois que entrei nesse mundo, busquei conhecer outros tipos de quadrinhos, diferentes tradições, o início da história dessa arte. Passei a escrever sobre quadrinhos ao mesmo tempo em que também escrevia quadrinhos. Ambas as atividades sempre foram importantes para mim.

Agora conheço bastante sobre a arte e a história dos quadrinhos. Mas quando era jovem, só conhecia a tradição franco-belga. Precisei descobrir os quadrinhos americanos, autores como Breccia, e também mangakás. Hoje sou amigo de muitos autores contemporâneos: Chris Ware, sobre quem escrevi; Jiro Taniguchi, um grande mangaká; e conheço Otomo, criador de Akira. Isso ampliou minha visão dos quadrinhos.

É um prazer, porque você aprende algo e depois tenta compartilhar. Dei muitas conferências e publiquei livros sobre o assunto. Este pequeno livro que está sendo publicado agora, “A Nova Arte – Histórias em Quadrinhos”, é uma síntese da minha pesquisa sobre quadrinhos em geral e, em especial, sobre a arte dos quadrinhos. Não conheço todos os quadrinhos — são tantos —, mas procuro compreender as possibilidades únicas dessa forma de narrar. Isso é muito importante para mim.

Quando alguém lê meus textos, pode pensar: “Ele poderia ter falado disso ou daquilo”. Mas talvez essa pessoa possa usar as ferramentas que ofereci ou criticá-las, o que também é ótimo. A reflexão teórica não existe para impor regras, mas para abrir perspectivas, mostrar possibilidades. Quando alguém critica meu trabalho, fico feliz, desde que seja feito com cuidado e seriedade. É uma coisa positiva. Como na pesquisa científica: temos que criticar para progredir, ou indicar novos exemplos interessantes. Hoje posso dizer que a pesquisa acadêmica, jornalística e histórica sobre quadrinhos está em pleno desenvolvimento.

Como continuação do assunto, quais autores contemporâneos você considera essenciais para entender a cena dos quadrinhos hoje? Pode escolher quantos quiser e talvez dar um panorama geral.

Meu autor favorito é Chris Ware. Acho-o tão importante quanto Winsor McCay, criador de “Little Nemo”, foi no início do século XX. Mas mesmo nos Estados Unidos há muitos outros criadores importantes, como Art Spiegelman, Emil Ferris, Craig Thompson, Adrian Tomine e muitos outros.

Na Europa, é até difícil citar nomes, porque há dezenas de talentos, especialmente mulheres artistas — algo relativamente recente, dos últimos 20 ou 25 anos. No início, praticamente só havia homens, com poucas exceções como Claire Bretécher. Agora, porém, há uma criatividade real.

No Japão, os mangás são muito diversos, mais do que às vezes conseguimos perceber pelas edições traduzidas. Há uma criatividade incrível, com todos os temas e estilos possíveis: ficção, não ficção, biografia, autobiografia.

Chris Ware e Benoît Peeters em 2009 | Foto: Michel Lunardelli

Vou dar uma palestra em Brasília chamada Novos Territórios dos Quadrinhos e Graphic Novels. Vou mostrar muitas imagens e, provavelmente, mesmo pessoas bem informadas ficarão surpresas ao descobrir a variedade de obras e estilos. Muitas vezes, até quando falo para públicos mais tradicionais, com pessoas mais velhas, elas dizem: “Nunca imaginei que fosse tão rico, e às vezes tão bonito”.

O artista italiano Lorenzo Mattotti, por exemplo, tem um trabalho belíssimo, que agrada até pessoas ligadas à pintura e às artes plásticas. Emmanuel Guibert é outro exemplo, um autor muito literário, fascinante. E Catherine Meurisse, que entrou para a Academia de Belas Artes da França, também escreveu histórias realmente emocionantes. Esses são apenas alguns nomes, porque a criatividade está por toda parte.

No entanto, a condição econômica dos quadrinhos, mesmo na França e na Bélgica, é mais difícil do que muitos imaginam. O mercado é importante e forte para títulos como “Asterix”, “Lucky Luke e alguns outros, mas hoje há tantos autores, incluindo jovens talentos, que a vida profissional se tornou complicada.

Também existem muitas editoras pequenas, e eu mesmo trabalhei com amigos quadrinistas em uma pesquisa sobre a situação dos autores. Há ainda muitas escolas de arte, que formam gente talentosa, mas muitas vezes esses jovens ficam desapontados, porque não conseguem viver do próprio trabalho.

Então, quando olhamos para o mercado francês, brasileiro ou mesmo indonésio, pode parecer, à distância, algo grandioso — Angoulême, festivais, etc. Mas, quando se analisa de perto, percebe-se que talvez os anos dourados tenham passado.

Disse há alguns dias, no Rio, que o sucesso que eu e François Schuiten tivemos com “As Cidades Obscuras” talvez não fosse possível hoje. Na época, havia revistas que ajudaram a popularizar nosso trabalho e nos permitiram viver dele. Agora, restam apenas os livros: é um formato prestigiado artisticamente, mas economicamente difícil.

Angoulême, na França, cidade que recebe o principal festival de HQs da Europa | Foto: Lesley Williamson

Você foi a Tiradentes e agora estamos em Ouro Preto. Essas duas cidades não estavam na sua agenda oficial aqui no Brasil. Não poderia deixar de perguntar: visitar essas cidades, visitar Minas Gerais novamente, é uma forma de alimentar sua criatividade?

Sim, com certeza. Devo confessar que adoro viajar, viajo muito pelo mundo. Tinha boas lembranças do Rio e de Ouro Preto, mas na época não tive muito tempo para conhecer bem as cidades. Desta vez decidimos ficar mais tempo.

E, é claro, tenho um interesse especial por Brasília, porque está muito próxima dos cenários dos nossos livros. Também visitamos em Niterói a Fundação Niemeyer e o museu que ele criou.

Será um prazer redescobrir Brasília, mesmo que seja uma estranha utopia. Mas é única, totalmente única, por isso é uma fonte de fascinação.

Na nossa história “La Fièvre d’Urbicande”, o segundo livro de “As Cidades Obscuras”, que fez muito sucesso na França nos anos 1980 e nos ajudou a consolidar a série, a cidade de Urbicande é muito influenciada por Le Corbusier, mas também por Lúcio Costa e Niemeyer.

Chegamos até a criar um conto muito curto , que foi publicado na última edição da revista À Suivre. Era sobre um personagem de “La Fièvre d’Urbicande”, o velho Urbatect. Ele sonha que a história começa de novo e está em Brasília. Suas últimas horas se passam lá. É só uma história de três páginas, não muito conhecida, mas que mostra o quanto Brasília era importante para nós.

E, claro, aproveitamos o Rio de Janeiro como todos, especialmente os franceses — ouvimos muitos franceses falando nas ruas. Ainda temos que conhecer muitos outros lugares. Queríamos ir a Petrópolis e a tantos outros destinos, mas ficará para a próxima.

Muito obrigadoa. Obrigada pela entrevista e por dedicar um tempo para nós.
Foi um prazer.

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