“Se eu tivesse que definir o conceito desse quadrinho em uma palavra seria seu subtítulo: Perseverança. Termo que define bem tanto a figura do Daruma quanto a realidade de ser Brasileiro, nosso país não está entre os mais fáceis, né?”, é assim que o quadrinista Monge Han, autor de “Vozes Amarelas” e sucesso nas redes sociais, apresenta sua próxima HQ, prevista para novembro pela Pitaya, selo da HarperCollins voltado ao público jovem adulto. Já em pré-venda, “Daruma: Perseverança” apresenta figuras da cultura leste-asiática em uma aventura contemporânea sobre laços familiares, luto e racismo.
A HQ é protagonizada por Yumi Santos Gushiken, uma jovem de 24 anos, que perdeu os pais cedo e precisou se responsabilizar pelos irmãos mais novos, Kenji e Sayuri. Com o passar dos anos, a dinâmica familiar os aproximou e os sonhos e broncas se tornaram compartilhados. Agora Yumi trabalha em um mercadinho com seu melhor amigo, Sayuri está vencendo todas as brigas dando seu melhor na escola e Kenji está prestes a entrar na faculdade. Mas uma tragédia volta a assolar a família Gushiken, abalando suas estruturas. Revoltada e se sentindo sem forças para lutar, a jovem recorre ao Daruma, para quem desde sempre fez o mesmo pedido… Assim, Yumi descobre uma conexão única que vai levá-la para um mundo novo e apresentá-la a realidades que jamais sonhou.
O Daruma é um símbolo tradicional japonês que representa a boa sorte e a perseverança. Tem a forma de um boneco com uma aparência característica, como olhos grandes e expressivos. No ritual de pedido ao Daruma, deve-se pensar em um desejo ou meta e pintar um dos olhos do Daruma, mantendo-o em um local visível, em que se possa lembrar da intenção. Quando o desejo for realizado, o outro olho do Daruma deve ser pintado como símbolo de gratidão.Quando idealizou o quadrinho, Monge Han sabia que sua protagonista seria uma mulher amarela. “Acho que sem querer é uma homenagem à minha mãe e a diversas mulheres amarelas que já conheci. Acho que nenhuma nunca seguiu esse estereótipo que é vendido pra gente na grande mídia, então fiz questão de fazer a Yumi ser o exato oposto do que esperariam que uma personagem amarela fosse”, conta o autor.
Ainda na capa é possível perceber a influência do quadrinho japonês no visual, mas Monge alerta que a HQ não pretende ser um mangá. “Daruma é mais do que tudo um quadrinho Brasileiro, onde eu seleciono o que acho de mais positivo nos mangás e no estilo de narrativa Kishōtenketsu que eu tanto absorvo como leitor, mas misturo com a brasilidade dos personagens, ambientes e contextos”, explica o artista e ainda cita o trabalho de Bryan Lee O’Malley em “Scott Pilgrim” como uma referência, “um quadrinho claramente ocidental com fortes inspirações nos mangás”. Aliás, tanto O’Malley quando Monge Han são de origem coreana.
Além de Monge, que assina o roteiro e a arte, colaboraram em “Daruma: Perseverança” Gabirotcho nos cenários; Lipe Cunha nas cores e Sassi Roses nos balões. Esta será a primeira HQ do selo Pitaya, criado em agosto pela HarperCollins, que em 2023 lançou “Vozes Amarelas” também de Monge Han.
Papo com o autor
Confira a entrevista na íntegra ao Fora do Plástico, em que Monge Han conta suas inspirações, desafios e objetivos em “Daruma: Perseverança”
Fora do Plástico: Yumi é uma personagem corajosa, irreverente, cheia de personalidade. Como ela surgiu para você? Conte um pouco sobre o processo de criação dessa protagonista.
Monge Han: Se eu tivesse que definir o conceito desse quadrinho em uma palavra seria seu subtítulo: Perseverança. Termo que define bem tanto a figura do Daruma quanto a realidade de ser Brasileiro, nosso país não está entre os mais fáceis, né?
Acho que por isso, quando lá no começo eu imaginei o conceito de um personagem usando uma máscara e incorporando o Daruma, naturalmente desenhei ela como uma mulher amarela. Acredito que isso vem muito da relação com minha mãe, sou filho único criado por uma mãe solo que nasceu na Coreia e foi criada no Brasil. Para além dos laços familiares temos uma amizade e uma relação de companheirismo muito forte, minha mãe é uma mulher extremamente forte, empática e perseverante, eu mais do que ninguém sempre acompanhei isso de perto: suas lutas, vitórias, dificuldades e a eterna compaixão pelas pessoas.
Refletindo sobre isso depois, percebi que o estereótipo sobre a mulher amarela é sempre de alguém submissa, quieta, fechada e frágil, e sinceramente pra mim isso nunca fez muito sentido. Minha mãe e diversas mulheres amarelas que conheci sempre foram geralmente sim muito gentis, mas ao mesmo tempo também existia nelas um lado muito forte e expressivo. A personalidade da Yu vem muito daí: ela é gentil e tem um coração enorme, mas também não gosta de levar desaforo pra casa e é muito sincera e enfática sobre o que pensa. É extremamente forte, mas também tem o coração no lugar. Acho que sem querer é uma homenagem à minha mãe e a diversas mulheres amarelas que já conheci. Acho que nenhuma nunca seguiu esse estereótipo que é vendido pra gente na grande mídia, então fiz questão de fazer a Yumi ser o exato oposto do que esperariam que uma personagem amarela fosse (mas também não é a outra típica personagem amarela ninja-misteriosa e séria da mecha de cabelo roxo, haha).
Fora do Plástico: Você volta, em Daruma, a tratar da identidade dos asiático-brasileiros. Sabemos que esse é um tema recorrente em seus trabalhos, mas você encontra meios diferentes de abordá-lo. De que forma você espera impactar os leitores ao tratar de questões que são importantes para você, mas podem ser negligenciadas por muitos?
Monge Han: Ao mesmo tempo que, assim como nos meus trabalhos anteriores, tenho a intenção de mostrar um pouco do trato racial que amarelos recebem e que raramente vemos sendo comentados na mídia, pra mim em Daruma é muito importante que o leitor observe como amarelos brasileiros são tão brasileiros como qualquer outra pessoa, mesmo considerando nossas especificidades como descendentes de uma diáspora leste-asiática. Esse aspecto é um pouco mais difícil de se abordar nos quadrinhos autobiográficos, onde justamente o holofote estava em como somos tratados de forma diferente por conta da nossa etnia.
Mas agora como estamos falando de um trabalho de quadrinho ficcional tenho a oportunidade de elaborar as várias facetas da vida desses personagens amarelos: tanto sua brasilidade que é comum para qualquer brasileiro quanto nossa brasilidade específica da vida amarela-brasileira. Pra mim as duas coisas mais importantes que amarelos BR deveriam se atentar são essas: 1- somos racializados e é importante desenvolvermos essa consciência racial, tanto para fortalecermos nossa identidade pessoal quanto para nos posicionarmos mais corretamente frente aos casos de racismo contra outras etnias no nosso país, mas também 2- é importante reivindicarmos essa nossa brasilidade amarela, somos latinos descendentes de leste asiáticos e mais que tudo Brasileiros! Muito da nossa cultura familiar pode ser originalmente de fora daqui, assim como muitas outras, mas ela é misturada com a cultura geral Brasileira e vira uma coisa nova. De certa forma é uma faceta da própria cultura Brasileira, não somos de outro lugar além do Brasil! O sentimento que é empurrado a nós desde criança é o de que somos estrangeiros no nosso próprio país, menos brasileiros por sermos filhos de imigrantes do leste-asiático ou que deveríamos “voltar para nossa terra”, sabe? Tento lutar contra isso mostrando a vida, os gostos e o dia a dia dos personagens. Espero que o leitor, sendo amarelo ou não, se identifique com a brasilidade plural dos personagens, seus dilemas e lutas.
Fora do Plástico: É possível perceber bastante a influência dos mangás em Daruma, seja na construção dos quadros, no próprio estilo do traço (o movimento, o estilo chibi alternado com a ação…) ou nos enquadramentos. Como os mangás influenciaram a sua formação como artista?
Monge Han: Assim como milhões de Brasileiros da minha geração, minha formação artística se acentuou muito quando tive contato com os mangás e animes dos anos 90. Eu era obcecado pelos quadrinhos desde novo, principalmente quando descobri que poderia acompanhar partes da história que ainda não tinham chegado no desenho animado! Sinto também que como era algo de origem leste-asiática e ao mesmo tempo bem-vista entre as crianças (algo raro na época) rolava uma grande identificação pessoal, até porque nos anos 90 a onda hallyu ainda não tinha chegado forte no Brasil, então eu tinha poucas referências do que era a cultura popular coreana. É uma das minhas principais raízes na arte, então até hoje mangá é o tipo de quadrinho que eu mais leio. Ao mesmo tempo, à medida que cresci e fui desenvolvendo mais consciência sobre o mundo e a sociedade, fui também criando uma visão um pouco mais crítica sobre algumas características populares dessas obras com as quais não me identifico tanto como autor.
Então em Daruma eu trago muitas referências da narrativa e do desenho do mangá, mas não é minha intenção de forma alguma fazer um mangá. Daruma é mais do que tudo um quadrinho Brasileiro, onde eu seleciono o que acho de mais positivo nos mangás e no estilo de narrativa Kishōtenketsu que eu tanto absorvo como leitor, mas misturo com a brasilidade dos personagens, ambientes e contextos, e com o aspecto de narrativa humorística e cotidiana que sempre vi presente em gibis da Turma da Mônica por exemplo, que sempre amei desde criança. Uma grande influência é Scott Pilgrim, que apesar de ter alguns trechos um pouco datados (até auto-criticados na animação mais recente), é muito feliz em fazer isso: ser um quadrinho claramente ocidental com fortes inspirações nos mangás. Inclusive curiosamente seu autor (Bryan Lee O’Malley) assim como eu também tem origem Coreana, mas no caso seus antepassados emigraram para o Canadá.
De certa forma um quadrinho com essas bases metaforicamente acaba refletindo essa nossa identidade, artistas amarelos-ocidentais com fortes raízes na cultura de quadrinhos leste-asiáticos.
Fora do Plástico: Daruma é uma história longa, diferente por exemplo daquilo que você havia apresentado em Vozes Amarelas. Quais foram os desafios de construir uma HQ assim?
Monge Han: Daruma é minha segunda experiência desenvolvendo uma narrativa ficcional. Na verdade talvez não seja correto dizer isso, porque desde novo lendo mangás isso é o que mais fiz dentro da minha cabeça. Mas botando no papel depois de me profissionalizar artisticamente, é a segunda. A primeira foi Mondolís (se pronuncia MondôLÍZ, não é muito fácil), um quadrinho de fantasia que desenvolvi durante a pandemia e nunca consegui terminar de fato. Em Mondolís tive diversas dificuldades, sem falar na época terrível que estávamos vivendo. Mas aprendi DEMAIS com seu desenvolvimento. Entendo que só consegui criar Daruma hoje por conta dos aprendizados que tive com meus erros e acertos em Mondolís (evitar nomes difíceis de se pronunciar foi um deles, haha).
Mesmo assim tive vários desafios. O principal deles foi conseguir botar tudo que eu tinha pensado pra história nas páginas que havia combinado com a editora. Acreditem, apesar de Daruma ter 224 páginas, sendo de longe o maior quadrinho que eu já fiz na vida, tive que cortar uns ⅔ do que eu tinha imaginado inicialmente. No entanto, esse corte justamente me dá a possibilidade de pensar em um desenvolvimento futuro dessas ideias com calma. Acho que o maior aprendizado foi uma certa máxima pessoal: a narrativa é o mais importante, vem sempre em primeiro lugar. Como autor é importante estar disposto a cortar coisas que você gosta, se aquilo for o melhor para a narrativa e para a experiência do leitor.
Outro grande aprendizado inesperado que tive foi a de como fazer uma certa direção de arte pro quadrinho. Em Daruma realizei o sonho de envolver outros artistas e profissionais na história! Os cenários foram desenvolvidos pelo Gabirotcho (quadrinista e cenarista que trabalhou nos desenhos Irmão do Jorel e Acorda Carlos / @gabirotcho nas redes) e as cores em algumas páginas especiais foram feitas pelo Lipe Cunha (ilustrador e colorista extremamente competente / @lipenerocunha ) por exemplo. Isso ajudou na finalização das páginas e engrandeceu demais o projeto, mas o que eu não tinha percebido é que também geraria o trabalho de analisar, revisar, ajustar pequenas coisas e me comunicar com todo mundo ao mesmo tempo que revisava a história e desenhava a minha parte das páginas: os personagens, enquadramentos, retículas, etc. No entanto, faria tudo de novo da mesma forma, é muito lindo ver que um quadrinho que nasceu da minha mente agora faz parte da vida de outros artistas e profissionais. Vira algo maior que eu!Parte do meu sonho é envolver cada vez mais pessoas nos meus quadrinhos, espero muito conseguir continuar fazendo isso!